1 de abr. de 2008

A China além do clichê

Matéria para a agência de notícias Xinhua - Abril de 2008


A China que está além do clichê

Você é daqueles que pensa que todo o chinês come insetos e cachorro? Que os chineses são todos iguaizinhos, como se fosse um país de irmãos gêmeos? Acha que os elevadores são estranhos e que todos não pára no quarto andar? Cuidado, o muito pouco que o ocidente sabe sobre a China muitas vezes se limita a clichês ditos e reproduzidos ao longo da História. A cultura e os costumes chineses são muito ricos. A China é muito grande. E tentar generalizar quando se trata de um país no qual vive um quinto da população mundial não dá. E é aí que essas velhas idéias dançam.

Mesmo não sendo “bem assim” tudo acaba tendo um fundo de verdade. Mas para pensar nisso é necessário levar em conta que a China é mais do que um pais. É um continente. Com clima, etnias e geografia variada.

– Não existem costumes iguais a cada 50 mil metros, muito menos em 9.561.300 quilômetros quadrados. E muito da cultura de hoje sofreu mudanças, influências externas ao longo dos anos, formando uma nova cultura, um novo estilo, principalmente nas cidades grandes –avalia o professor Ye Tao, da Universidade de Shangdong, secretário-geral e vice-presidente da Sociedade de Cultura e Folclore da China e autor de diversos livros sobre o tema.

Para Ye, os chineses não devem impor costumes ou hábitos aos estrangeiros. No entanto, com a abertura do país, ele acredita que deva aumentar a curiosidade mútua.

– Os estrangeiros devem conhecer melhor a cultura chinesa, que é abrangente e muito distinta por regiões. A cultura é focalizada na variedade, isto é, deve permitir a existência de todas as culturas. E sempre antes de falar, é melhor conhecer – salienta o especialista.

Seguindo o conselho do professor, vale a pena saber de onde vem o que é dito por aí e até que ponto o que se afirma corresponde à realidade.
Quatro é tão má sorte assim?

A aversão ao número quatro tem origem em um problema de homofonia. O quatro, em chinês, se pronuncia "si", exatamente a mesma pronúncia da palavra correspondente a "morte". Por isso, era recusado pelo público. Porém, mesmo que alguns considerem o quatro um numero ruim, ele está longe de ser tão abolido. É mais facil achar um prédio sem quarto andar em uma região de estrangeiros do que em um bairro majoritariamente chinês.

– Isso existe, mas pouco. Elevadores de alguns prédios não têm o 4º andar, às vezes nem o 13º andar. Na realidade, o 13 não tem nenhum mau significado na cultura chinesa, apenas na cultura ocidental. Como os chineses recebem várias culturas diferentes, acabaram adaptando isso também – explica o professor Ye.

Se, por um lado, o som do quatro em mandarim pode significar morte, para alguns é sinal de riqueza. Na música, ele se pronuncia "fa", que em chinês significa "ganhar montes de dinheiro". Assim, algumas pessoas escolhem os números com quatro para trazer boa sorte. No fim das contas, todos buscam um pouquinho mais de sorte, inclusive os ocidentais, com seus pés-de-coelho e trevos de quatro folhas.

Os chineses são mesmo todos iguais?

Os olhinhos puxados talvez confundam os ocidentais. Apesar de ser uma característica marcante, não iguala toda a população. A China possui 56 etnias diferentes, com características culturais e físicas próprias. Rostos mais arrendondados, finos, narizes menores, olhos azuis... Sim, existem chineses de olhos azuis. E não pense que são os filhos de algum estrangeio que nasceram acidentalmente na Ásia. No norte da China existe uma etnia russa, com chineses loiros, altos, muito brancos e de olhos azuis.

O professor Xiao Fang, doutor em Estudo Folclórico e diretor do escritório de pesquisa sobre Folclore do Centro de Pesquisa de Livros Folclóricos da Universidade Normal de Beijing, enfatiza que é necessário ao estrangeiro mudar um pouco o olhar em relação ao país e à sua população.

- Não apenas esta diferença marcante deve ser observada. A diferença está nos detalhes. Da mesma maneira os chineses acham que os olhos ocidentais são todos iguais. A única maneira para conhecer a China real é vindo aqui e conhecer diretamente o país e o povo.

A cabeça do peixe? Para mim?

É senso comum acreditar que a cabeça do peixe, em um banquete é oferecido ao convidado em sinal de honra. Mas a história não é bem assim. Este animal é sim parte importante na gastronomia chinesa. Porém, as maneiras de tratar o peixe, ou a cabeça dele, são distintas em cada região. Nas áreas litonâneas da China, os moradores dependem da pesca e não permitiam virar o peixe nas refeições, pois isso poderia “virar o navio”. O costume também foi transmitido para banquetes. Nestas regiões o peixe deve ser colocado com cabeça dirigindo a leste, para o lado do mar, e o rabo a oeste. Então, não é em toda a China que os convidados mais importantes comem a cabeça de peixe, mas sim se sentam na direção direta dele.

- Para completar, a cabeça em chinês é “tou”, que é líder. Assim podemos compreender porque a cabeça do peixe é tão importante, em determinadas regiões, mesmo sem carne. Em outras pode ser apenas uma brincadeira.
Delícia de espetinho de escorpião

Nada gera tantos equívocos quanto os espetinhos de insetos. A capital da China, por exemplo, recebe inúmeros turistas ansiosos por ver espetinhos de escorpião, bichos-da-seda e ganhafotos. A idéia que se vende no exterior é de que é muito comum encontrar (e comer) este tipo de iguaria. Mas lembrem, nunca é “bem assim”. Para o professor Ye não tem fundamento dizer que este é um costume dos chineses.

- Isto foi muito popular em zonas litorâneas, onde se criavam bichos-da-seda. Em épocas de escassez de alimentos foram muito consumidos. Foram.

Luo Cheng, que é empregado de uma banquinha de espetinhos em Wangfujing, na capital, diz que a iguaria é bem acolhida pelo público. Principalmente pelos estrangeiros.

- Muita gente vem experimentar. Os estrangeiros têm menos medo de comer que os chineses.

Outro prato polêmico, e procurado por turistas, é cachorro. Muitos acreditam que a cada esquina encontrarão um restaurante que sirva a iguaria. Mas, como a China é continental, isso também varia a cada região. O consumo é mais comum no norte do país, e mais popular ainda em outros locais da Ásia, como a península coreana.

O professor Xiao salienta que na maioria das áreas chinesas, o consumo de carne de cachorro não é bem recebido, da mesma forma que causa estranheza os hábitos gastronômicos de outros países.

- Estrangeiros não podem compreender porque alguns chineses comem estes espertinhos, isto é normal, da mesma forma que alguns chineses não conseguem entender o consumo de caracóis na França. Tudo isso é causado pela barreira cultural e disseminação errada de uma cultura.

O professor Ye acha que os ocidentais não devem avaliar o consumo desse tipo de carne, nessas regiões, como um ato bárbaro.

- Isso é um costume nascido devido ao clima, a produtos locais, não é porque os chineses são violentos ou cruéis. Não é justo criticar uma cultura com os padrões de outra – advertiu.

Andar na rua (não) é um caos Este é um conceito muito antigo. Muito mesmo. E, pior, ainda é repetido (inclusive publicado). Quem sai da Avenida Jianguomen em direção à Cidade Proibida e à Tian'anmen (Praça da Paz Celestial), passa por lojas (originais) da Tiffany's e da Rolex. E qualquer voltinha pelos shopping centers da cidade deixa bem claro que isso não existe.

Outro grande equívoco é pensar que andar na capital é uma experiência caótica a ponto de as pessoas se baterem e esbarrarem umas nas outras na rua o tempo inteiro. A China tem 1,3 bilhão de habitantes, mas deve-se lembrar que não estão todos em um mesmo lugar ou em uma mesma cidade. Beijing é uma metrópole como qualquer outra.

As bicicletas deixarão de ocupar o trânsito das cidades chinesas

Se existe algo de diferente em Beijing em relação às outras metrópoles é o fato de carros e pedestres conviverem com as bicicletas no trânsito. Elas têm espaço reservado nas ruas e sinaleira própria. Entrega de gás, e de algumas lojas, são feitas de bicicleta. O professor Xiao acredita que elas dificilmente sumirão do trânsito chinês, mesmo com o aumento do número de carros na cidade.

- Acho os dois meios de transporte pode conviver, pois acredito que os dois se completam. O número de pessoas que andam de bicicleta até poderá diminuir, mas ela não vai sair da vida dos chineses. Como não são todos os chineses que possuem dinheiro para comprar um carro, a bicicleta acaba sendo a escolha ideal, pois é conveniente, faz bem ao ambiente, além de ser excelente exercício, beneficiando a saúde.

Nas mulheres a maior mudança

Entre as maiores mudanças culturais dos últimos anos, segundo Ye, está o tratamento dado à mulher na China. Antigamente, além de haver muitos tabus em torno do sexo feminino, elas eram consideradas sujas, estavam no nível mais baixo da sociedade, não podiam trabalhar ou ter contato com outros homens que não seus maridos.

– Hoje, a mulher chinesa tem emprego, ganha o próprio dinheiro, goza dos mesmos direitos dos homens e participa da sociedade.

É aqui que outra afirmação tida por certa no Ocidente vem abaixo: de que as chinesas casam virgens e que o único homem que conhecem é o próprio marido. Com o aumento de sua participação na sociedade, as mulheres também ganharam o direito de fazer sexo antes do casamento. Mesmo sendo comum encontrar meninas com mais de 20 anos que não são mais virgens, a maioria acha fundamental que a primeira experiência sexual seja com seus namorados, e em geral elas nunca tiveram muitos parceiros. Uma mulher de Fujian, de 23 anos, que prefere não se identificar, teve apenas três. Ela se acha com sorte por ter um marido, chinês, que não se importa com isso, e vê uma grande melhora nesse sentido para as mulheres.

– Hoje há menos insistência com relação à virgindade, porque as meninas estão cada vez mais independentes, seja em capacidade de vida, seja financeiramente.

Ka Sheng, 23 anos, natural da província de Yunnan, é o retrato desta mulher em mutação. Independente, trabalha com publicidade, já morou na Alemanha e tem dois livros publicados, um de poemas e um de prosa. Perdeu a virgindade ainda no ensino médio, num misto de rebeldia e descoberta do próprio corpo. Não se importa com que os outros pensam, desde que ela esteja se sentindo bem. Acredita que a virgindade não vai influenciar na escolha de um marido, mas o amor. Para Ka, as mães completam o papel que, para ela, devia ser também da escola: a educação sexual. E apesar de todas as mudanças, ela acredita que ainda é pouco.

- As mulheres já participam de quase todos os setores de trabalho, mas os que ganham mais sucesso no final são sempre homens. Isso a gente pode ver na política, mulheres ainda ocupam poucas posições e homens ainda dominam principalmente o país. Além disso, as mulheres precisam entender melhor o próprio corpo. A perda da virgindade é apenas um processo inevitável na vida das meninas, mais cedo ou mais tarde. O mais importante é que ela se proteja, especialmente a saúde.

Ainda há muito na China a ser descoberto pelo Ocidente. É uma cultura tão vasta e tão rica que você não vai se arrepender de visitar o país e conhecê-lo para muito além dos clichês. Se resolver insistir neles, não se surpreenda se for você o fotografado.

No Brasil se fala espanhol?

Se o Ocidente não sabe muito sobre a China, o inverso também ocorre. O mundo que fala português é, muitas vezes, completamente desconhecido pelos chineses. "No Brasil se fala espanhol?" não é uma pergunta rara. Muitas vezes, nem os clichês são conhecidos. Portugal e Brasil foram lembrados por Liu Bo, 38 anos. Mas só porque ele gosta muito de futebol.

- Conheço futebol do Brasil, é bem famoso, e as praias lá são lindas. Sobre Portugal, o futebol no país é bom, e tinha o domínio de Macau antes de 1999. Angola é um país em guerra, eu acho.

Analistas e professores de Relações Internacionais são unânimes: a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ainda explora muito pouco seu potencial econômico e cultural na China.

- Ao Brasil, e aos outros paises, ainda falta a percepção de que a China também é um grande mercado cultural a ser descoberto - disse Celso França, primeiro-secretário da Embaixada Brasileira em Beijing.

Para Severino Cabral, professor de Relações Internacionais da Universidade Cândido Mendes e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos da China e Ásia-Pacífico, este caminho está sendo percorrido através do comércio. Mas, mesmo neste sentido, as relações entre Brasil e China estão muito aquém do potencial.

- A China é o segundo maior parceiro comercial do Brasil. Nós somos o terceiro da China. Estados Unidos e Argentina têm um volume maior de comércio que o Brasil. Se o Brasil tivesse corrido, já seria o segundo, com toda a certeza. O volume de negócios poderia estar em US$ 60 bilhões. No entanto, não chega nem à metade disso.

Dos países da CPLP, Portugal é o que tem essas relações um pouco mais amadurecidas. É o único da comunidade a abrigar um Instituto Confúcio (centro de estudos de mandarim e da cultura chinesa). Além disso, há um pedacinho do país localizado no sul da China: em Macau, somente em dezembro de 1999 a bandeira chinesa ocupou o lugar destinado ao pavilhão nacional. Nem por isso a presença portuguesa pode ser considerada muito mais acentuada na China do que a do Brasil. Para o professor Manuel Lopes, do departamento de Relações Internacionais da Universidade Lusíada, em Portugal, é difícil alcançar o equilibrio:

- As relações entre os povos são independentes dos poderes e têm aumentado cada vez mais, especialmente na área económica e também cultural. Exemplo disso é o aumento da procura do estudo do chinês. Já as relações entre poderes governamentais têm sido colocadas mais na área política e econômica, em detrimento da área cultural. Por isso existe um certo desequilíbrio, que é importante que os respectivos poderes corrijam.

Mesmo com esse atraso, as perspectivas são otimistas. Principalmente para o Brasil, que figura ao lado de China, Rússia e Índia no grupo dos grandes países em desenvolvimento, os BRICs. E os quatro têm dado o que falar, uma vez que estão entre os dez maiores PIBs do mundo. A China com maior destaque, com crescimento acima de 10% ao ano. Porém, todos têm um traçado similar na busca do desenvolvimento.

- Após a Guerra Fria, em que o mundo se configurava de maneira bipolar, criou-se uma tendência de abertura, de multipolaridade. E é aí que os dois países encontram espaço para crescer e caminhar por uma mesma via - afirma Cabral.

Se, na Universidade de Beijing por exemplo, música e escritores brasileiros não são conhecidos do público chinês, ao mesmo tempo as aulas de português oferecidas pela embaixada brasileira, tanto na universidade, como na própria embaixada, têm maior procura, bem como as outras atividades.

- Se, por um lado, estamos aquém do desejável, o potencial é grande. As nossas aulas de português estão lotadas, a mostra de filmes brasileiros que realizamos em 2007 estava sempre com as salas cheias e a oficina de capoeira, que comecou com 12 pessoas, terminou com 50. É importante que, neste momento, o governo e as empresas usem sua imagem aqui, se promovendo no campo cultural – analisa Franca.

O professor Lopes compartilha essa opinião. Segundo ele, somente com as trocas culturais e com investimentos públicos e privados para esse fim é que essa relação poderá ser explorada em seu potencial máximo.

- Só com o conhecimento mútuo criamos confiança e verdadeira reciprocidade. Nossas sociedades estão numa dinâmica de aproximação acentuada. Logo os poderes governamentais irão também a reboque dessa dinâmica bilateral e global. Por isso, o futuro é de aprimoramento, tanto em nível governamental quanto não-governamental.

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